O Acordo de não persecução penal na Lei nº 16.964/2019 e a sua aplicação aos processos em andamento

O papel do juiz quando interpreta e aplica as lei é há muito tempo objeto de bastante discussão doutrinária. Isso porque quando se depara com a divergência interpretativa surge a questão de ter o magistrado que atuar em verdadeiro ativismo judicial ou aguardar inerte a posição do legislativo, fato que torna a situação bastante complexa, pois quais os limites dessa aplicação pelo juiz e como se dá essa aplicação aos processos penais em andamento.

Nesse contexto tem se expandido uma forte corrente de política criminal de tendência utilitarista, cujo objeto é o “acordo sem processo”, não raramente com antecipação da imposição da pena.

Deste modo o acordo de não persecução penal vigente a partir da Lei nº 13.964/2019 tem gerado bastante discussão em se tratando de processos em andamento. Assim, o presente trabalho analisa a atuação do magistrado dentro da modalidade de interpretação possível dentro do ordenamento jurídico pátrio.

O incremento do consenso penal e o acordo de não persecução penal

Na esteira do que vem ocorrendo no mundo com o aumento do número de casos envolvendo processo penal, assim como da necessidade de atribuir celeridade aos processos, o brasil vem se alinhando a corrente do plea bargainig norte-americano.

Todavia, ainda que no afã de resolver os problemas estruturais que vem se desenhando na justiça criminal decorrente da demora e do excesso de casos criminais, o brasil que tem estrutura civil law, vem enfrentando enormes problemas para poder administrar esta justiça negocial. Isso decorre do fato que o plea bargainig adentrou nos sistemas jurídicos continentais sem a devida preparação, aproximando o processo penal brasileiro ao processo penal americano.

Assim a doutrina vem apontando casos em que a justiça negocial apresenta sérios problemas: a) casos envolvendo acusados pobres, incapazes de arcar com os custos de uma assessoria jurídica qualificada de modo a obterem um acordo justo; b) possibilidade de imputações qualificada de modo a obter justo acordo. Ademais, destaca-se o recente entendimento da excelsa corte no sentido de suspender o juiz das garantias.

O pacote anticrime trouxe segurança jurídica ao instituto, por força da Lei 13.964-19, o art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP). Os requisitos estipulados na referida Lei foram: a) confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal sem violação ou grave ameaça à pessoa; e b) pena mínima prevista no tipo penal inferior a 4 (quatro) anos. Além disso, há outras condições que podem ser ajustadas cumulativa e alternativamente, pautadas pelo subjetivo critério da necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime, (mal) trazido, do caput do art. 59 do Código Penal, que trata da fixação da pena: a) reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; b) renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; c) pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços; d) pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; e) cumprir, por prazo determinado outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

A interrupção da norma penal e processual penal

Segundo Carlos Maximiliano, são dois os principais procedimentos interpretativos, quais sejam, o gramatical e o lógico. Pelo primeiro, busca-se encontrar o significado perfeito da palavra empregada. Já o segundo. Já a interpretação lógica se entendo pelo estudo do texto legal em si, sem o recurso a elementos anteriores, com a aplicação conjunta de regras tradicionais e precisas de lógica geral, nesse caso o pensamento prevalece sobre a literalidade, ocorrendo o extremo oposto, ou seja, reduzindo a ciência viva do direito a silogismos de rigidez excessiva. Ainda, é necessário apontar os estudos de Juarez Freitas, que propõe a chamada interpretação sistemática, que recorre ao estudo do conjunto do dispositivo legal com outras normas que tratam do mesmo objeto, buscando-se a efetividade máxima de princípios dirigentes. O Autor cita a interpretação sistemática da Constituição Federal, que decorre da necessidade de se buscar a efetivação de direitos e garantias fundamentais, como a individualização da pena, contraditório, ampla defesa e humanidade, por exemplo.

Aplicação do acordo de não persecução penal aos processos em andamento.

O autor traz alguns precedentes para analisar parâmetros sobre a matéria do acordo de não persecução penal em casos práticos. Em ação penal da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, e da 14ª Vara Criminal de Curitba, nota-se que de a Lei 13.964/2019 implicou uma reforma profunda para o sistema jurídico penal brasileiro, como ocorreu com a inclusão do já referido artigo 28-A, do Código de Processo Penal, que passou a reconhecer a validade do referido acordo de não persecução penal.

Ainda na esteira do referido entendimento, que refere o alinhamento, tem-se que a tendência mundial de ampliar os casos de justiça penal negocial, deve-se parti do pressuposto de que em se tratando de partes antagônicas, é da essência do instituto “que cada parte abra mão de uma percela de sua posição processual em prol de uma solução mais célere e benéfica, se comparada com uma eventual futura sucumbência, de modo que a confissão do acusado é  parte integrante do acordo, cabendo aos indiciados no caso do Ministério Público manifestar interesse na celebração.

Ademias, cabe ao Judiciário avaliar tanto a voluntariedade das tratativas, como a adequação e abusividade de suas cláusulas, como já ocorre com a suspensão condicional do processo prevista na Lei nº 9.099/95. O entendimento foi no sentido de que, em se tratando de norma de natureza processual ou híbrida, deve ser desde logo observada e, no caso de ação penal já instaurada, de modo a evitar possível alegação de nulidade futura.

Outrossim, há entendimento, quanto ao segundo caso, no sentido de que é inviável a incidência da norma penal mais benéfica “quando já existente condenação, quer estando transitada em julgado, quer passível ainda de impugnação mediante recurso.

Conclusão

Muito se viu que houve avanço na justiça negocial dentro da seara criminal, como forma imediata de busca de melhorias no sistema penal, mesmo que isso custasse assumir perdas de garantias e direitos fundamentais. Ainda assim, resta evidente que não se pode enxergar no direito penal o caminho para a resolução de conflitos sociais, sendo considerado na doutrina que qualquer perspectiva de melhora deveria ser iniciada pela redução da abrangência do Direito Penal.

Por fim temos que pontos cruciais ainda encontram sendo objeto de bastante reflexão pelos doutrinadores e operadores do direito como por exemplo se deve-se considerar tratar-se de norma penal de natureza mista e, portanto, retroativa, diante das disposições mais benéficas ao acusado, será mantida a limitação temporal de aplicação adotada? O fato de o pedido ter sido feito incidentalmente em sede de apelo extraordinário, mesmo diante dos termos do art. 2º do Código Penal que estabelece a retroatividade da lex mitior ainda havendo sentença condenatória transitado em julgado, se haverá empecilho para tal reconhecimento, vez que não pode ser o instituto usado apenas para prejudicar acusados e reduzir garantias.